05/11/2014

o meu hajj parte 2 - dimensões interiores

Depois da primeira parte (>aqui) vou agora tentar transmitir uma pequena ideia sobre a os aspectos físicos, psíquicos e emocionais do meu hajj - sem expor demasiado a minha alma, e sem "desescrever" os momentos espirituais. Já foi difícil na minha língua materna (>alemão) quanto mais em português, já que ainda há pouco tempo não me interessava por religião e portanto não disponho sobre um "vocabulário religioso". Peço desculpa - a tradução não é perfeita.

"A peregrinação realiza em meses determinados. Quem a empreender, deverá abster-se das relações sexuais, da maldade e da disputa...."
(Al-Baqara: 197)

..abster-se da disputa... - nada fácil, tomando em consideração que cada peregrino está de nervos à flor da pele, pelos esforços físicos e psíquicos e pela falta de sono. E ainda sentindo no meio da enorme multidão um ligeiro sopro quente, seco, vindo "desse dia", em que cada um de nós estará sózinho em frente do seu Criador, "nesse dia, a cada qual bastará a preocupação consigo mesmo ('Abasa: 37)", "É o dia em que nenhuma alma poderá advogar por outra, porque o mando, nesse dia, só será de Deus." (Al-Infitār: 19). Com pouquíssimas excepções controlam-se todos. Ás vezes até se consegue ler o esforço numa cara, quando uma expressão irritada se vai transformando num sorriso. Em soma, as caras alegres predominam em grande maioria, mesmo nas situações mais desagradáveis. 

O convívio com as outras peregrinas foi uma experiência maravilhosa - sobre tudo nos dias em que estivemos nas tendas em Mina. Conheci mulheres extraordinárias. Organizavam-se leituras de Corão espontâneas, todas ajudavam umas às outras e emprestaram cabides, champô e medicamentos. Fornecemo-nos mutuamente com água, café ou chá - foi simplesmente bonito. (Isto diz uma que ainda há pouco tempo não se podia imaginar passar férias num dormitório com camas lado ao lado, uma individualista que precisa de privacidade, gosta de estar sozinha, de retirar-se e fechar a porta... ) E ainda havia aquelas mulheres incríveis da Arábia Saudita que moravam na nossa tenda, admiradas com a discriminação dos Europeus (! - parece que as partes árabes da cidade de tendas é bem mais confortável) e que deram presentes a cada uma de nós. جزاكن الله خيرا



Não quero pormenorizar os estados fisicos por os quais passei. Resumo: Cheguei nas fronteiras em todos os aspectos. Primeiro andei com transtornos gastrointestinais - graças à overdoses de Immodium e a uma dieta de laban, bananas, chá e tosta seca sobrevivi os primeiros 10 dias sem incidentes embaraçosos. Claro que as minhas costas estragadas doíam. Doíam bastante - a pesar daquela cadeirinha genial que me salvou do pior, evitando que tivesse de aguardar (aguarda-se muito!) de pé. Esses então, os coitados dos meus pés, ficaram cheios de borbulhas. E logo ainda veio aquela bronquite obrigatória com uma tosse que sufocava o pouco sono.

E neste estado enfraquecido andamos. Andamos e andamos. Quilómetros e quilómetros. Ou seja até os Djamarat, no meio da multidão, por túneis ventilados a alta pressão, ou no sol do meio-dia, por ruas principais com transito e cheiro horrível a gasolina. Depois, à volta da Kaaba, levada pela multidão compacta. Não esquecendo o Sa'i (ritual de se percorrer a distância entre os dois montes, Safa e Marwa) na mesquita arcondicionada à temperatura de frigorífico. 

Mas, é como um milagre: Cada vez que pensas "agora não posso mais, vou cair já, não consigo dar mais um único passo " - se prova que:

فَإِنَّ مَعَ ٱلْعُسْرِ يُسْرًا
"então, por certo, com a dificuldade vem a facilidade,"
إِنَّ مَعَ ٱلْعُسْرِ يُسْرًۭا
"por certo, com a dificuldade vem a facilidade."
(versos 5 e 6 capítulo 94)

...e de repente tudo é fácil e esqueces-te de todas as dores e daquele cansaço de chumbo, é como se estivessem algures fora de ti, e só te resta ter vergonha que foste de novo tão pouco confiante e duvidaste que Ele te ia ajudar no momento certo. Estás arrependido que até chegaste a lamentar, sabendo que os outros peregrinos estão na mesma, e que há muitos que estão muito piores do que tu (tantas cadeiras de roda!).  E descobres o que é "tauba" (arrependimento) em verdade, e sentes aquela insaciável saudade de pertencer àqueles que "serão os mais próximos de Deus (Al-Wāqi'a 11). E tudo é simplesmente bonito, sentes te bem e leve, comovido e realizado, perto dEle, e gostavas que isto nunca mais acabasse....

E - embora sabendo que um muçulmano só tem de fazer esta viagem uma vez na vida e que há milhões que estão a espera desta oportunidade há anos, e não lhes queres tirar o lugar - mesmo assim fazes parte daqueles que, mal chegam em casa, não tem desejo maior do que partir de novo em direcção de Meca. E fazer tudo muito melhor... 

Perguntaram-me sobre efeitos posteriores:

Físicos:
perdi 4 kilos de peso (estou desconfiada que os recuperarei rapidamente...)
Condição fisica melhorada (já em perigo - que o meu estado de saude não me deixo fazer as minhas caminhadas habituais)
Sobre aquele efeito do meu visual já falei >aqui ;)

Outros:
Aprendi muitissimo, sobre tudo sobre mim próprio - olhei em muitos espelhos أشكر الله. InschaAllah poderei aproveitar dos novos conhecimentos e eles me ajudarão no meu "djihad an-nafs *). O meu coração está cheio de amor e gratidão e do desejo de saber merecer a graça que me foi concedida. E cheia de esperança de que Deus tenha aceite o meu hajj e o das minhas companheiras, a pesar de todos os erros e imperfeições. 
E: Fiquei ainda muito mais convencida de que estou a andar no caminho certo. Obrigado. Alhamdulillah.


E, ao escutarem o que foi revelado ao Mensageiro, tu vês lágrimas a lhes brotarem nos olhos; reconhecem naquilo averdade, dizendo: Ó Senhor nosso, cremos! Inscreve-nos entre os testemunhadores! 
(Al-Mā'ida: 83)

Ó Senhor nosso, não desvies os nossos corações, depois de nos teres iluminado, e agracia-nos com a TuaMisericórdia, porque Tu és o Munificiente por excelência. (Al 'Imrān: 8)



*) o djihad an-nafs  é a luta contra o próprio ego, quer dizer contra o egoismo, contra características más (por exemplo inveja, avareza, arrogância etc.), contra o excesso (por exemplo todo o típo de vícios). Também se chama o "grande Djihad".

02/11/2014

adeus lenço disfarçado!

Antes de falar nos aspectos espirituais da viagem para Meca quero mencionar uma pequena mudança relativa a minha aparência.

Depois de abraçar o islam constatei rapidamente que o tema "lenço" exaltava os ânimos tanto dos muçulmanos como dos chamados "críticos do islam" duma maneira completamente desproporcionada. A mim isto enervou-me um pouco - acho que não se deve reduzir uma religião a uma peça de tecido. Para já, o véu não é um pilar do islam, em contrário da confissão, da oração, da Zakat, do jejum e do hajj. 

Escrevi vários artigos sobre essa minha opinião - infelizmente (ainda) não os traduzi. Quem compreender alemão: os links para os artigos em alemão estão em baixo.

O que até agora não fiz, foi dizer se eu próprio uso algum "resguardo da cabeça" ou não. Normalmente não costumo contar aqui no blogue como lido com temas controversos, mas desta vez vou abrir uma excepção - talvez consiga tornar aquela nova pequena mudança pelo menos um pouco compreensível para os leitores não-muçulmanos.

No início tinha a tendência de partilhar a opinião de muitos muçulmanos liberais e modernos e considerar o lenço obsoleto. Era o desejo o pai do pensamento - tudo seria mais fácil se a minha fé não dava logo na vista... 

Podia ter ficado nesta. Para já não tinha marido que me obrigava embrulhar-me, nem havia "polícias haram" nos meus arredores, e nem sequer muçulmanos que me tentassem influenciar.

Mas mesmo que as publicações dos liberais pareciam muito lógicas a uma "nova" - de alguma maneira não me sentia confortável. Por isso comecei a investigar os 4 ">maddhab", e constatei que a grande parte dos chamados eruditos, aqueles que estudaram a religião, e deles não só os antepassados, nem apenas os conservativos, acham que os versos em causa (ver em baixo) são prova de que cobrir o cabelo é um dever para a mulher muçulmana. E também descobri que muitas muçulmanas modernas, liberais e independentes vêem a coisa da mesma maneira e usam o lenço com toda a naturalidade.

No fundo não tinha sido necessário fazer esse trabalho: A minha própria intuição dissera o mesmo, embora não quis admitir no início. Mas nem o verso 60 do capitulo "An-Nur" do corão  (ver embaixo) conseguiu tirar-me o desejo de cumprir esse mandamento.

Então comecei a usar o lenço. Fiz um belo nó na nuca ou dei umas voltas à cabeça com o pano. Porque não quis que os meus familiares e amigos tivessem de envergonhar-se demasiado pela sua esposa/mãe/filha/irmã/tia/cunhada/amiga etc. enlouquecida...

Foi aceite melhor do que pensava. Só: Claro que assim não atingi o objectivo: Não fui reconhecida como muçulmana.  Até essa maneira disfarçada de usar o lenço foi enganador: Às vezes alguém ousou perguntar-me se estava boa de saude - provavelmente suspeitaram uma quimioterapia. Outros pensavam que se tratava dum acessório um pouco excêntrico. E quando por acaso uma vez encontrei outro "hijab" - coisa que por aqui acontece muito raramente - o meu pano disfarçado também não chegou para ser reconhecida, nem para um curto contacto de olhos, quanto menos para um tão desejado "salam alaikum".... 

Bem. E agora ia partir para o hajj, para a peregrinação. E eu decidi usar o lenço de maneira islamicamente correcta pelo menos durante esta viagem, do primeiro até o ultimo momento. 

Ousei. Pareceu certo. E senti-me bem. 

E por isso, assim deixei.

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Os capítulos relevantes:

Ó Profeta, dize a tuas esposas, tuas filhas e às mulheres dos fiéis que (quando saírem) se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que sejam reconhecidas e não sejam molestadas; sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo.
(Al-Ahzāb: 59)

Dize às fiéis que recatem os seus olhares, conservem os seus pudores e não mostrem os seus atrativos, além dos que (normalmente) aparecem; que cubram o colo com seus véus e não mostrem os seus atrativos,............ 
(An-Nur: 31)

(aliás, só para informação: os homens são mencionados em primeiro lugar: Dize aos fiéis que recatem os seus olhares e conservem seus pudores, porque isso é mais benéfico para eles; Deus está bem inteirado de tudo quanto fazem. (An-Nur: 30)

Quanto às idosas que não aspirarem ao matrimônio, não serão recriminadas por se 
despojarem das suas vestimentas exteriores, não devendo, contudo exporem os seus atrativos. Porém, se se abstiverem disso, será melhor para elas. 
Sabei que Deus é Oniouvinte, Sapientíssimo.(An-Nūr: 60)


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Os Links para os artigos em alemão